A IMPORTÂNCIA MUSICOLÓGICA DO ACERVO CLEOFE PERSON DE MATTOS
Marcelo Campos Hazan

Discorrer sobre Cleofe Person de Mattos e sua obra significa, antes de tudo, reconhecer o caráter especial da relação que havia entre a distinta musicóloga e o seu principal objeto de estudo: o Padre José Maurício Nunes Garcia. Não existe, na história da musicologia brasileira, maior exemplo de amor e dedicação do que o demonstrado por Cleofe para com a vida e a obra de quem ela se referia carinhosamente como o "Zé". O reflexo mais palpável dessa devoção talvez fossem os milhares e milhares de bilhetes, blocos, brochuras, cadernos, cartões, etiquetas, fichas, fotografias, mapas, missivas, partituras, pastas, programas, recortes e souvenires, em grande medida ligados a José Maurício, que se encontravam dispersos por todos os cantos do apartamento de Cleofe. Esses documentos - foco do projeto "Organização e Disponibilização do Acervo Cleofe Person de Mattos" - exibiam uma ubiquidade que é atestada por todos aqueles que tiveram o privilégio de frequentar a residência da pesquisadora no Largo da Glória, no Rio de Janeiro. Era como se esses papéis personificassem a presença do próprio José Maurício, na intimidade do lar, inspirando Cleofe em sua jornada em prol do resgate do passado musical brasileiro.

É errado supor, todavia, que a significância do Acervo Cleofe Person de Mattos (ACPM) limita-se às pesquisas sobre esse compositor. A trajetória biográfica de Cleofe confunde-se com a própria história da música no Brasil, aspecto que confere ao acervo um potencial musicológico especial, para além do fascínio com José Maurício. Para os estudiosos interessados em explorar esse potencial, por exemplo, do ponto de vista das instituições civis, políticas e eclesiásticas em torno das quais girou a atividade musical no País, em contraste a um enfoque sobre obras e indivíduos que é norma dentro da musicologia tradicional, as oportunidades são inúmeras. A Universidade do Distrito Federal, onde Cleofe graduou-se como professora com "especialização em música e canto orfeônico", em 1941, constitui um caso particularmente ilustrativo. Embora sua existência tenha sido efêmera, a importância histórica e política dessa instituição é inquestionável. Sua criação, em 1935, e sua dissolução, em 1939, balizam um período dramático, em que a perspectiva de democratização, com a promulgação da Constituição de 1934, foi suprimida pelo autoritarismo que culminou no chamado Estado Novo, encampado por Getúlio Vargas em 1937. A documentação no ACPM deixa entrever a contradição entre, de um lado, o caráter inovador da Universidade do Distrito Federal, expresso na formação de um quadro docente composto por renomados intelectuais brasileiros e estrangeiros, e, de outro, o viés doutrinário do programa de canto orfeônico - carro-chefe da propaganda getulista -, promovido através dessa mesma instituição. A documentação também oferece, por meio de dezenas de cadernos e programas de aula, entre outros materiais, uma imagem exata do ensino prático e teórico da música - ditado e solfejo, harmonia e contraponto, história e folclore - naquele estágio da educação musical no Brasil.

Após a extinção da Universidade do Distrito Federal, seus cursos foram absorvidos pela Universidade do Brasil, onde Cleofe diplomou-se em composição e regência em 1942. A Escola de Música da Universidade do Brasil constitui uma das encarnações institucionais da atual Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de onde Cleofe aposentou-se como professora catedrática, em 1979. A documentação no ACPM referente às atividades de Cleofe como docente dessa instituição e como pesquisadora incansável da Educação musical deixa entrever o percurso percorrido pela Escola de Música através de uma sucessão de conjunturas políticas: Monarquia (Conservatório de Música, 1841 a 1890), Primeira República (Instituto Nacional de Música, 1890 a 1931), Primeiro Governo de Getúlio Vargas (Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, 1931 a 1965) e Golpe Militar de 1964 (Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1965 até o presente). A propósito do Conservatório de Música do Rio de Janeiro, o primeiro das Américas, criado em 1841 e inaugurado em 1848, cabe um parêntese a sobre sua posição no quadro político do período regencial. Seu surgimento seguiu na esteira da criação, por parte do governo monárquico, de uma série de entidades culturais e educacionais, tais como o Arquivo Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Colégio Pedro II, com vista à construção de uma nova identidade para o jovem País, recém-independente de Portugal. Em meio à profunda agitação social e política do interregno regencial, o Conservatório originou-se da iniciativa de um reduzido grupo de músicos profissionais que logrou vender às autoridades imperiais a ideia de que o cultivo da música religiosa e operística era propício à estabilidade da nação. Na fala desses profissionais, ecoada pela elite intelectual da época, à música foi atribuído o duplo poder de aproximar o Brasil dos centros de civilização europeus, no plano externo, e, ao mesmo tempo, de incorporar à civilização uma fração da indócil ralé não-escrava, no interno. Para os estudiosos do Conservatório de Música do Rio de Janeiro, a documentação no ACPM anuncia novos horizontes.

Outro exemplo do entrelaçar da carreira de Cleofe com os rumos da música no Brasil, é o papel desempenhado por ela como regente, paralelamente às suas atividades como professora e estudiosa, à frente da Associação de Canto Coral do Rio de Janeiro. A Associação foi co-fundada pela própria Cleofe, recém-egressa da Universidade do Brasil, ao início da década de 1940. Sob sua batuta, e a de convidados como Igor Stravinsky (1882-1971), Karl Richter (1926-1981) e Sir Colin Davis (1927), esse conjunto coral, ainda em atividade, acumula, hoje, mais de setecentas apresentações. Um volume expressivo de partituras, ingressos, programas, cartazes, recortes de periódicos, pertencentes ao ACPM, permitem recompor a história desse importante conjunto musical, suas gravações, integrantes, platéias, repertório e turnês.

Se José Maurício constituiu a principal inspiração musicológica de Cleofe, a maior contribuição dessa estudiosa sobre o seu compositor predileto só pode ter sido o catálogo temático das suas obras, publicado em 1970. O ACPM fornece um retrato exato da gênese desse Catálogo Temático das Obras do padre José Maurício Nunes Garcia, desde a pesquisa de campo empreendida pela autora, compreendendo dezenas de acervos de manuscritos musicais no Brasil e no exterior, até a concretização da diagramação gráfica, passando pela confecção dos incipits musicais e a seleção do material iconográfico. Quase quarenta anos depois, essa obra permanece sendo, pela exatidão e abrangência, a principal contribuição do gênero no âmbito da musicologia latino-americana.

A confecção do catálogo temático pautou-se na colheita e análise de inúmeras fontes musicais manuscritas, muitas das quais estão sendo divulgadas pela primeira vez por este projeto. Grande parte dessas fontes consiste de reproduções, cujos originais podem ser encontrados nos dois principais repositórios das obras mauricianas, o Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro e a Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Todavia, entre as fontes colhidas por Cleofe com vista à elaboração de seu catálogo também existem manuscritos originais, que se revestem de não pouco ineditismo. Destaca-se, entre esses originais, um grupo de manuscritos musicais pertencente ao Coro de Santa Cecília de Rio Pardo (RS), em partes cavadas, e também uma partitura do oratório "A Criação", de Haydn, que há de levantar algumas sobrancelhas. Trata-se de um manuscrito com 140 folhas, com 19 pautas cada, em tinta sépia e com encadernação de luxo, com o seguinte enunciado gravado na capa em dourado: Die Schöpfung | ORATORIUM | in Musik gesetzt | von J. Haydn. | PARTITUR. Sabemos que José Maurício compôs dois Salmos baseados em motivos dessa obra, em 1821. Além disso, existem indícios anedóticos de que, nesse mesmo ano, o oratório teria sido ensaiado ou apresentado no Rio de Janeiro, sob sua regência. A origem da partitura é desconhecida, mas parece cópia do início do século XIX. Fica então a pergunta: teria alguma ligação com o compositor e regente brasileiro?

Além dessas, o ACPM possui vasta quantidade de fontes de caráter não-musical, destacando-se entre elas a documentação administrativa, patrimonial e contábil que Cleofe reproduziu ou transcreveu do Fundo Casa Imperial/Capela Imperial do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Para os historiadores da Catedral de Nossa Senhora do Carmo, em sua fase como Capela Real (1808) e Imperial (1822) dos Bragança no Brasil, a expressão institucional máxima do vínculo entre Igreja e Monarquia no contexto do Padroado oitocentista, essa documentação será de especial interesse. Um outro grupo de fontes primárias não-musicais a ser ressaltado compreende as transcrições que Cleofe realizou de matérias publicadas em periódicos do século XIX, sobretudo do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Esse diário, lançado em 1827 e ainda em circulação, constitui um riquíssimo manancial de informações sobre o universo musical oitocentista (programações teatrais, festividades religiosas, sociedades musicais, aulas a nível particular e institucional, críticas e resenhas, comércio de partituras e de instrumentos). A título de exemplo, muitos estudiosos poderão se surpreender com a notícia de que violinos da marca Guarnerius e Amati circularam pelo Brasil durante o século XIX. Porém é justamente o comércio desses instrumentos que está registrado no exemplar de 23 de janeiro de 1840 do Jornal do Commercio, conforme revela Cleofe. O trabalho iniciado pela pesquisadora confirma a extraordinária importância desse periódico para o alargamento do conhecimento musicológico no Brasil e deixa entrever a necessidade de se realizar uma investigação complementar mais exaustiva e sistemática.

A produção intelectual de Cleofe sobre José Maurício não se restringiu ao catálogo de 1970 e nem, cabe enfatizar, à notável biografia que a distinta musicóloga publicou, 27 anos depois, dando sequência àquele trabalho. A edição das obras desse compositor, patrocinada pela FUNARTE, também se reveste de especial relevância, não apenas no quadro da produção de Cleofe, mas no contexto da musicologia nacional. Essa iniciativa, que consistiu da publicação de nove partituras entre 1978 e 1984, é o que de mais próximo se conseguiu chegar, no Brasil, de um projeto editorial seriado, à maneira de uma opera omnia. A série foi prefigurada, em 1977, por Obras corais a cappella, uma antologia de Antífonas, Graduais e Motetos, também auspiciada pela FUNARTE. O processo de elaboração e publicação dessas e de outras edições musicais mauricianas, no Brasil, Alemanha e Estados Unidos, está fartamente documentado por centenas de cartas, contratos, esboços, provas, rascunhos e recibos pertencentes ao ACPM.

Ao editar e imprimir as obras de José Maurício, Cleofe seguiu no rastro de alguns pioneiros, notadamente Alberto Nepomuceno (1864-1920), no final do século XIX, e Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1905-1992), na década de 1930. Por sua vez, as edições de Cleofe prepararam o terreno para o florescimento de novas contribuições, nos mais diversos formatos (fac-similar, urtext, crítica, prática) no Brasil e no exterior. A efervescência que hoje existe em torno da edição das obras de José Maurício, todavia, não está isenta de brechas em relação às quais o ACPM poderá ser útil. Com efeito, o acervo contém tanto obras inéditas, transcritas no formato de partitura, como partes cavadas de obras que já haviam sido impressas, porém apenas em forma de grade. Esse material dá uma medida especialmente nítida do calibre e da magnitude dos recursos disponibilizados por este projeto, para que as obras do compositor sejam cada vez mais revividas nos palcos e coros de igreja.

Entre os diversos exemplos de caráter pontual que podem ser citados como indicativos das potencialidades do ACPM, destaca-se um registro que Cleofe extraiu do Códice 807 (página 108, número 468), Pessoas Avulsas (Chegadas), pertencente ao Arquivo Nacional. Esse registro, inconspicuamente anotado em um fichário entre centenas de outras transcrições, diz respeito ao regresso do músico baiano Damião Barbosa de Araújo (1778-1856) à Bahia, após uma atribulada estadia de treze anos no Rio de Janeiro. A anotação de Cleofe confirma e acrescenta uma série de informações biográficas de não pouco interesse sobre esse músico, na medida em que revela a data exata de seu retorno e descreve em detalhe sua aparência física e a de sua esposa, assim como explicita o número de filhos menores e de cativos em sua posse. O caso de Damião Barbosa do Araújo pressagia outras surpresas dramáticas entre os milhares de dados meticulosamente extraídos do Arquivo Nacional, assim como do Arquivo da Cúria Metropolitana, Biblioteca Nacional, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e de outros repositórios dentro e fora do Rio de Janeiro, que só uma pesquisa pormenorizada do conteúdo do ACPM poderá descortinar. Com efeito, e a título de conclusão, a importância musicológica do acervo vai muito além do que deixa antever esta breve introdução. A ideia, aqui, é tão somente aguçar o paladar dos estudiosos - os que se sentarem à mesa estarão servidos de um verdadeiro banquete, sem precedentes nos anais da história da música no Brasil.

Um comentário final. Como documenta o ACPM, Cleofe colaborou com diversos projetos musicológicos ao longo de sua carreira, mas, nesses projetos, seu nome nem sempre acabou sendo creditado de uma forma condizente com o nível de seu esforço e participação. Não se trata tanto, aqui, de lamentar esse reconhecimento precário, mas de apontá-lo como sintomático da personalidade de Cleofe, cuja modéstia e humildade, segundo aqueles que com ela conviveram, comparavam-se à sua estatura como musicóloga, educadora e intérprete.